Bebê Rena (Netflix)

Bebê Rena (Netflix) 604 453 Zilá Marcia Chamon
Babê Rena, uma das sérias da Netflix mais comentadas do momento, nos leva a refletir sobre o preço que estamos dispostos a pagar para mantermos a suposição de que somos amados.


Confesso que não foi fácil assistir até o último episódio. Mas, sem dúvida, valeu a pena. Babê Rena, uma das sérias da Netflix mais comentadas do momento, nos leva a refletir sobre o preço a que estamos dispostos a pagar para mantermos a suposição de que somos amados. Se, por um lado, estamos diante de uma série nada convencional, por outro, Bebê Rena nos coloca em contato com várias mazelas e sofrimentos do humano.
Dentre os diversos e complexos aspectos abordados pelo seriado (baseado na história real do próprio protagonista, o ator Richard Gadd), nos chama a atenção a “insistência” do personagem Donny em se colocar em situações de humilhação e risco da sua integridade emocional e física através de todo tipo de abuso. ( A partir daqui, teremos spoiler).
Quando nos perguntamos sobre o que se transmite para um filho; o que é passado entre gerações, de imediato associamos com valores, informações e conhecimentos que são importantes para determinadas famílias em função da história de cada um. Mas poucas vezes nos damos conta de que existe uma transmissão do negativo, ou seja, de um material psíquico que ultrapassa os limites dos significados conscientes. Não é incomum observar na clínica um paciente que se queixa de determinado sintoma e, em especial, da repetição deste sintoma ao longo da sua vida, mas que não entende a causa deste sofrimento. Apenas se vê aprisionado num circuito que lhe provoca forte angustia, sem conseguir quebrar este ciclo. Em algumas situações (como ocorre nesta série da Netflix), o paciente acaba descobrindo que há algo traumático na história de algum de seus antepassados que mantém semelhança com seu sintoma, mas que nunca foi verbalizado por ninguém da família. Trata-se de um segredo familiar. Esta situação que causou um enorme sofrimento para um parente e que vamos chamar de um “não-dito”, atravessa os tempos e encontra, em outra geração, a continuidade da dor. O que não é elaborado, tende a se repetir. Com o próprio paciente, ou nas gerações seguintes. Assim, o traumático, o material psíquico que nunca encontrou uma tradução, um endereçamento, a possibilidade de simbolização, tende a se repetir como forma de tentativa de dar alguma representação ao que aparece como pura angustia. Vamos nos lembrar de que uma criança não capta apenas palavras. Capta afetos, sensações, olhares, o que é proibido de ser mencionado, a dor, a alegria. Assim se transmite uma história.
O personagem Donny percebia que estava aprisionado em um circuito com cores masoquistas, de autodestruição. O abuso era uma temática recorrente. Mas a peça que faltava no quebra-cabeças de sua vida e que lhe permitiria a visão da cena por completo foi apresentada por seu pai, no último episódio com a revelação inesperada de um segredo familiar que nos leva a entender que o pai havia sofrido também abuso sexual. O impacto desta revelação é transformador para o personagem principal e, aparentemente, para a vida de seus pais. Aliás, podemos considerar que a revelação de Donny também libertou seu pai de uma história que, como segredo, não podia ser verbalizado, mas causava efeitos.
Ok, vcs podem questionar sobre o final da série. ” Mas ele não voltou a repetir a história, já que procurou o abusador, continuou ouvindo as mensagens de Martha, a perseguidora…e, como grand finale, se colocou na mesma posição de Martha, na última cena?” Bem, eu direi….Se vc não está mais alienado, então é livre. Inclusive para escolher repetir o que desejar.