… todas as noites os seres humanos põem de lado os invólucros com que envolvem sua pele, e qualquer coisa que possam usar como suplemento aos órgãos de seu corpo (…) podemos acrescentar que, quando vão dormir, despem de modo inteiramente análogo suas mentes, pondo de lado a maioria de suas aquisições psíquicas. Assim, sob ambos os aspectos, aproximam-se consideravelmente da situação na qual começaram a vida. Somaticamente, o sono é uma reativação da existência intrauterina. (Freud, 1917, p. 253)
Introdução
Sono e sonho são experiências fundamentalmente regressivas; mas o que, então, marca a sua especificidade, a satisfação que buscam proporcionar? Trata-se de discriminar entre o estado de completude narcísica ligado à revivescência das primeiras experiências de satisfação (modelo do sonho) e o narcisismo primário dito absoluto (modelo uterino do sono), que remete à pulsão de morte – dito de outro modo, entre a supressão de uma tensão por meio da satisfação de uma pulsão e o estado de eliminação absoluta da tensão. No sonho, o narcisismo do sonhador, que protagoniza o sonho, é colocado em cena; o narcisismo do sono ultrapassa tanto o próprio sonhador, como seus desejos, que se dissipam (Green, 1988. In Ganhit, 2002. p. 67)
Esse texto é uma breve reflexão sobre o documentário – A Vida em Mim1 – que apresenta uma situação dramática recorrente, no período de 2003 a 2005 na Suécia, quando centenas de famílias provenientes da região dos Balcãs, de antigas repúblicas soviéticas ou ainda de comunidades étnicas, como os Yazidis2, refugiam-se no país e suas crianças são acometidas pela chamada ‘síndrome da resignação’, ou seja, um desligamento da realidade caracterizado por um sono profundo, que se estende por meses e que segundo médicos e psiquiatras, muito se assemelha a um estado de coma, embora até hoje não tenham sido identificadas causas orgânicas, que justifiquem esse estado.
Pretendo trazer aqui, algumas ideias que me ocorreram a partir do filme, em articulação com as referências bibliográficas sugeridas no módulo Sonho-Sono, ministrado pela Professora Ana Panachão, com foco nos conceitos de defesa, desamparo, pânico e trauma.
O filme ficou muito presente para mim, quando falamos sobre o ciclo vigília – sono, os mecanismos do sonhar e também sobre a ausência do sono como sintoma, então, tentei ao longo do período, refletir o que poderia representar um sono profundo, excessivo e ininterrupto dessas crianças, do ponto de vista psicossomático.
Os psicossomáticos experimentam precocemente emoções tão intensas que ameaçam seus sentimentos de integridade e de identidade. Neste sentido, na tentativa de preservação, foi-lhes preciso construir um sistema com características concretas, a fim de evitar o retorno de vivencias traumáticas, sentidas em um momento anterior e que remetem, portanto, a ameaça de aniquilamento. (Considerações de Joyce McDougall para o estudo da Psicossomática. Pg. 36)
Algumas Reflexões
Assisti esse documentário pela primeira vez em 2020. Fiquei impressionada, com uma sensação de inquietação e estranhamento frente ao inominável da situação, ainda desconhecida como fenômeno psíquico, mesmo para os estudiosos.
Essas crianças adormecidas, sofrem da chamada Síndrome da Resignação, nome atribuído por psiquiatras a partir de pesquisas sobre seu estado físico e biológico e talvez menos sobre a dor insuportável que possivelmente enfrentaram antes de serem acometidas por esse misterioso sono profundo. Ainda assim, os estudos não conseguiram detectar as razões disparadoras da síndrome ou descobrir causas orgânicas que pudessem explicar a origem desse sono e como ele se sustenta ao longo do tempo.
Quando ouvi a história das famílias, vítimas de situações violentas em seus países de origem, me pareceu que as crianças foram fortemente afetadas pelo horror irrepresentável, de perderem seus entes queridos, sendo impelidas a se defender de forma radical, mergulhando assim, num sono que sugere uma recusa frente a situação traumática que as colocou na condição de refugiadas. Aqui, de acordo com Laplanche (2001), pensamos no trauma referido ao excesso e à intensidade da situação vivida pela criança, que fica impedida de reagir de forma adequada, diante dos efeitos que a violência vivida provoca em sua vida psíquica e nesse caso, o sono parece revelar-se como uma estratégia de enfrentamento.
Se o recalque faz barreira para a transmissão, gerando uma falha na passagem da representação inconsciente para a representação verbal pré-consciente, a recusa suspende, desliga as representações do vivido, isolando a marca da experiência de toda a possibilidade de tradução e elaboração. Não produz conflito nem soluções de compromisso. Resta um estrago, uma chaga sem registro de sentido, esgarçando o tecido psíquico, comprometendo os limites da noção de realidade. Não há nem lembrança, nem esquecimento. (Vannuchi)
Assim, não diria que essas crianças são ‘resignadas’ quanto à sua história, me ocorre que psiquicamente há uma série de mecanismos em ação, um jogo de forças que remete aos aspectos dinâmicos e econômicos das pulsões, que podem tê-las levado à essa ‘solução/defesa’ que se caracteriza como a retirada do investimento libidinal da realidade externa, até que algo novo aconteça e lhes permita acordar e reinvestir uma realidade menos ameaçadora e mortificante.
De acordo com Laplanche (2001), o mecanismo de defesa tem por finalidade, reduzir, suprimir qualquer situação que ameace a integridade e a constância do indivíduo biopsicológico. O processo defensivo especifica-se em mecanismos de defesa mais ou menos integrados ao ego e toma, as vezes, um aspecto compulsivo, operando parcialmente, de forma inconsciente.
O estado de sono não quer saber do mundo externo, não se interessa pela realidade, ou apenas o faz quando há o risco de se abandonar o estado de sono, de se despertar. Logo, ele subtrai o investimento do sistema Cs, tal como dos outros sistemas, o Pcs e o Ics, na medida em que as posições neles presentes acatem o desejo de dormir. Com esse não investimento do sistema Cs abandona- se a possibilidade de um exame da realidade, e as excitações que, independentemente do estado de sono, tomaram o caminho da regressão, o encontrarão livre até o sistema Cs, no qual serão tidas como realidade incontestada. Freud (1914-1916).
O adormecimento das crianças, remete ao sono de ‘Branca de Neve’ – é o que ouvimos a psiquiatra dizer no início do filme. Um sono aparentemente plácido e tranquilo, uma criança no aguardo de que algo externo lhes afete e faça recuperar o investimento libidinal no mundo exterior, ao lado dos seus.
De acordo com Zygouris (1995), um sono pode representar tanto separação quanto tentativa de reencontro do objeto das primeiras satisfações, ou seja, a mãe, que era segurança, alimento e protetora do sono.
As crianças adormecidas apresentam ausência de estímulos internos, que remete ao ‘estado de nirvana’ com seu nível de tensão zero, conforme mencionado por Freud. Talvez, esse estado de adormecimento que insiste, possa ser compreendido como um sintoma psicossomático, na medida em que se manifesta no corpo, tornando-o inerte, livre de investimentos internos ou externos.
Um ótimo exemplo da plasticidade da vida anímica nos é dado pelo estado do sono, que buscamos a cada noite. Desde que aprendemos a traduzir também sonhos loucos e confusos, sabemos que toda vez que dormimos nos livramos de nossa moralidade penosamente conquistada, como fazemos com uma roupa — para novamente vesti-la na manhã seguinte. Esse desnudamento é sem dúvida inócuo, pois devido ao sono estamos paralisados, condenados à inação. (Freud (1914-1916)
Ao que parece, a reação das crianças, impossibilitadas de simbolizar a situação traumática, se dá por meio dessa ‘pequena morte temporária’, como resposta ao terror de ter a própria vida e dos familiares ameaçada. A incapacidade de lidar com a violência, provoca o afastamento radical do real inominável, uma reação ao extremo desamparo e pânico, como no caso de um garoto, que se sentia perseguido e assustado frente a possibilidade de sofrer novos ataques, mesmo tendo mudado de país e que gradativamente foi desinvestindo o mundo externo, até dormir ininterruptamente por mais de 1 ano.
Sob esse prisma, o pânico diz respeito à angústia despertada pelo desabamento da ilusão de um ideal protetor onipotente, que garantia a estabilidade do mundo psíquico organizado longe de incertezas, da falta de garantias e de indefinições.
O pânico é uma das possibilidades afetivas que o sujeito encontrou no enfrentamento da condição de desamparo fundante e insuperável na constituição da vida psíquica. Ser tomado pelo pânico atesta que o sujeito não conseguiu subjetivar a condição de desamparo. Essa é a motivação básica do pânico: a perda do ideal protetor ou o medo da perda do amor. (Menezes, 2005, p. 197)
Ocorre que para além da experiência da violência vivida pelas famílias e da necessidade de buscar asilo em outro país, a situação que enfrentam como exilados, parece de alguma forma, reeditar o trauma vivido, já que a burocracia estatal faz protelar a resposta para o pedido de asilo, o que reforça a situação de vulnerabilidade e insegurança das famílias frente à expectativa de construir uma nova vida.
Além disso, a decisão de abandonar o país de origem, por si só, já pressupõe um luto frente a uma decisão dolorosa, na medida em que se abandona a história, os amigos, a família, as raízes, a cultura e tudo aquilo que compõe a trajetória das famílias.
Muitas vezes esse refúgio ‘compulsório’ se dá em países bastante diferentes do original, impondo uma adaptação, que envolve a aprendizagem da língua, dos costumes, da alimentação e da lógica cotidiana do trabalho e da vida de modo geral. Sendo assim, embora seja primordial a decisão de se autopreservar, abandonando a situação de violência e terrorismo, não podemos acreditar que as famílias passam impunes por isso, ou que essa escolha não deixará suas marcas.
Portanto, nesse período de transição, as crianças convivem cotidianamente com a insegurança quanto ao futuro, mas aos poucos, desenvolvem certo pertencimento ao país, fazem amizades, frequentam a escola, aprendem a língua, tem uma vida um pouco mais digna, mas ainda presenciam a preocupação cotidiana de seus pais e o temor de serem deportados a qualquer momento.
É nesse clima instável que essas crianças vivem, e esse parece ser um fator que somado à situação original de violência, determina o desencadeamento da síndrome.
Constantemente somos mobilizados por percepções conflituosas, mesmo diante do esforço exercido pelo psiquismo para manter um equilíbrio que garanta a homeostase e preservação do aparelho. Na tentativa de defesa contra uma invasão catastrófica, certas experiências psíquicas sentidas como ameaçadoras, são excluídas do pensamento, além de não serem representadas. O sintoma psicossomático é consequência de um fracasso neste tipo de defesa arcaica, que tem como objetivo eliminar da consciência emoções vistas como traumáticas, sem qualquer pretensão de elaboração. Assim, diante do impacto causado pelo mundo exterior e impossibilidade de conter este excesso por vias mentais elaboradas, o sujeito fica mais exposto a este tipo de enfermidade. (Mc Dougall, p.32)
Outras questões
Poderíamos nos perguntar se essas crianças sonham. Haveria nesses casos, o sonho como guardião desse sono profundo? Se não, o que sustentaria a permanência desse estado de adormecimento? Poderíamos pensar na figura materna, como guardiã do sono, quando investe libidinalmente o corpo de seu filho adormecido?
Seria importante promover uma reflexão psicanalítica sobre esse fenômeno, que se somasse aos estudos psiquiátricos, em busca do melhor entendimento sobre a vida psíquica dessas crianças, que além de sua singularidade histórica, apresentam, características comuns, como serem provenientes de famílias que sofreram situações traumáticas e desestruturantes, vítimas de torturas, perseguições, estupros e mortes, praticadas por grupos terroristas, provocando um enorme sentimento de terror, que as levaram a sair do seu país para sobreviver em outro lugar.
No entanto, ao se refugiarem na Suécia, a tranquilidade almejada ainda está distante de se instalar, pois ficam à mercê da burocracia que envolve a concessão do visto e com isso, a fantasia de que poderão ser deportadas e obrigadas a conviver novamente com ameaças e atentados.
Essa situação de vulnerabilidade só faz persistir o sentimento de desamparo dessas famílias que continuam vivendo em pânico e sob ameaças.
As crianças percebem toda essa situação de forma intensa, sabem identificar que sua família está amedrontada, escutam a conversa entre os adultos e são capazes de identificar que a situação é bastante incerta. Para Mário Eduardo (1999), a noção de terror é qualificada como:
O desamparo sem limites, que está em todo o lugar, em todo momento, e cuja marca fundamental é o não-senso. O terror implica paralisia, entrega de si mesmo ao mortífero. É do lado da vida que se tem pânico; este seria a forma de tornar apreensível, a experiencia inominável do desamparo. (Sigal, p.111)
Sobre o sono – Reflexões
“O estudo do dormir é, portanto, um complemento fundamental da teoria dos sonhos e o fato de que o sono passe, na obra freudiana, a ser compreendido como um retorno ao narcisismo primário, remete-nos ao campo das primeiras relações com um outro materno, fundador de um desejo de dormir. Assim, nos trabalhos psicanalíticos pós freudianos sobre o sono e o adormecer, as relações primordiais mãe-bebê passam ao primeiro plano.” (Ganhito, 2002. P.68)
É assim, que esse sono continuado responde ao traumático, àquilo que não é simbolizado, parece representar um lugar primário de proteção, um retorno ao útero materno, quando ainda não havia sujeito. Trata-se de um sono que incide no corpo como excesso, insistência e repetição, que talvez possa ser entendido como uma ‘narrativa silenciosa’ frente ao real irrepresentável, como resposta à memória traumática em busca de esquecimento.
E qual seria o papel do analista frente a criança que retorna desse estado de desinvestimento e recusa da realidade exterior, cuja memória parece trabalhar pelo apagamento da violência?
Parte do trabalho testemunhal do analista consiste na identificação daquilo que insiste, do que não se pode dizer, do que aparece na atuação e na passagem ao ato; isso significa que o trabalho não se restringe ao que está presente em termos de sentido de uma narrativa. (Inglez)
Como vimos, o aval para a permanência no país pode durar meses, sendo que, se for negado, a família pode recorrer da decisão, o que a recoloca no final da fila, para reiniciar o processo, sem a certeza de que obterá uma resposta positiva para a nova solicitação.
Nesses casos, a perspectiva real de deportação recai como algo aterrorizante. Então, ao se depararem com esse fato, as crianças gradativamente, param de falar, passam a comer cada vez menos, deixam de tomar água, retirando pouco a pouco seu investimento libidinal dos objetos externos, até se ausentarem completamente por meio do sono.
O filme mostra que em famílias com dois ou mais filhos, os irmãos das crianças acometidas, podem manifestar sintomas também. É possível pensar no processo de identificação com o irmão adormecido, afinal, são crianças que brincavam juntas, iam à escola, dormiam no mesmo quarto e tinham uma vida comum intensa, quando repentinamente uma delas adoece e se torna a questão central da família, que sofre demais e investe toda energia nos cuidados com ela.
O que significa presenciar o sono-coma do irmão querido, como sustentar esse luto e ainda conviver com a dor de seus pais e a insegurança da situação? Como essas crianças podem sobreviver ao real inenarrável que se impõe como traumático? Qual é o lugar dela na família, nesse contexto? Como poderá suportar o luto da mãe pela ‘perda’ do filho adormecido? Como essa situação afeta a vida de vigília desses irmãos? Me ocorre que a situação de violência disparadora da síndrome, o fato de presenciarem o processo de adormecimento de seus irmãos e a comoção que essa situação provoca, também as levam a somatizar, desenvolvendo o sono como defesa primária frente à impossibilidade de representação pela palavra, assim, recusam o conflito por meio do desinvestimento libidinal no mundo externo, num movimento narcísico de auto investimento, chamando a atenção da família para si.
O desligamento do mundo exterior e das aquisições psíquicas da vida de vigília organizadas pelo eu é um movimento gradual, ao qual o psiquismo entrega-se com cautela: trata-se de uma renúncia ao mundo compartilhado com outros, aos investimentos objetais e até mesmo aos investimentos imagéticos do eu, em direção a um “encontro profundo com os investimentos narcísicos mais fundamentais (Freud, 1917)
Uma das famílias entrevistadas relata que ao chegarem no departamento de imigração para receber a resposta sobre o visto de permanência, o oficial que a atendeu, relatou em voz alta, o que tinha motivado a fuga da família para a Suécia, incluindo as ameaças, violências e estupros dos quais foram vítimas. Isso ocorreu na presença das crianças, que a essa altura, já entendiam a língua do país e ficaram muito assustadas, pois seus pais não haviam revelado essa situação para elas. Logo após essa entrevista, sua filha começou a desenvolver a síndrome.
Para Laplanche (2001), em termos econômicos, podemos dizer que o traumático vai se constituir por um excesso de excitações em relação à possibilidade do sujeito dominá-las e elabora-las, nesse caso, a impossibilidade de nomear e falar sobre a situação vivida, pode ter disparado o desejo de se retirar da situação, por meio do desinvestimento no mundo externo, interrompendo assim o ciclo de sono-vigília, eliminando a angústia de ter que se deparar com a dor de suas famílias.
Podemos pensar que como as famílias ainda não se sentem seguras o suficiente, essa situação ameaçadora, poderia se caracterizar como a reedição do traumático.
Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações – isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo – é proporcionado pelas frequentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador. As fronteiras desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir a uma retificação através da experiência. Entretanto, algumas das coisas difíceis de serem abandonadas, por proporcionarem prazer, são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar mostram-se inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna. (Freud, 1927-1931)
O sono nesse sentido, constitui-se como regressão, um desejo de retorno primitivo ao útero, à proteção e a ilusão de completude simbiótica que ilusoriamente torna os corpos e mentes da mãe e do bebê uma só unidade. O retorno ao estado inconsciente parece responder ao insuportável da dor e do medo, expressando o retorno ao narcisismo primário, como mecanismo de defesa.
… Freud postulará a distinção entre um “narcisismo primário” e um “narcisismo secundário”, embora os limites entre os dois conceitos nunca tenham sido totalmente demarcados. A teoria sobre o sono, de Freud, será quase integralmente desenvolvida a partir desse conceito. A ideia do “narcisismo primário” ligado ao sono é correlativa do abandono dos investimentos nas imagens cotidianas do eu e dos objetos do mundo, lançando o sujeito em uma experiência de ser em plenitude e sem limites, tal como supostamente seria a vivência do bebê no meio intrauterino. Para que se possa fruir de tal experiência de desidentificação e de puro gozo de ser, é necessário que previamente sejam criadas as condições de entrega pessoal a essa experiência, sem se deixar amedrontar pela indeterminação e pelos riscos pulsionais (de confrontação crua com elementos que deveriam permanecer recalcados) que ela comporta. (Pereira, 2003. Pg. 136)
Para essas crianças, interrompe-se o ciclo sono-vigília e o sono atua como rompimento radical com a realidade, como recusa ao insuportável que não foi simbolizado. Pensar na pulsão de morte como um aspecto da síndrome, em que o corpo é o objeto investido, que elimina a tensão pulsional.
O sono passa a significar um movimento periódico de retirada libidinal do exterior, uma espécie de refúgio amoroso e reparador em si mesmo frente aos conflitos da vida diurna, cujo protótipo é o estado intrauterino de quietude. Trata-se, portanto, de um movimento regressivo que ultrapassa o próprio eu,
que se dilui nas águas fusionais, nirvânicas, de um momento anterior à sua emergência, por meio da reunião das pulsões parciais – justamente a outra acepção do termo narcisismo primário (Freud, 1914). Desse ponto de vista, o sono é uma experiência próxima ao autoerotismo, que antecede a organização da instância egóica e seus investimentos narcísicos. (Ganhit, 2002. Pg. 67)
Não sabemos quais os caminhos subjetivos percorridos por essas crianças, até chegar nessa situação. Poderíamos articular o trauma, as pulsões e o sono como defesa ou excesso pulsional nesses casos? Esse sono poderia ser entendido como eliminação do estado de tensão pulsional, ou regressão ao início da vida?
A regressão envolvida na realização alucinatória de desejos, no sonho, passa a ser incorporada à ideia de uma regressão mais profunda, aos tempos mais arcaicos da vida do sujeito: à experiência de silêncio, imobilidade e calor do feto no útero da mãe – precisamente a acepção de narcisismo primário desenvolvida para pensar o estado de sono (1917). O sonho, então, já não expressa apenas o desejo de continuar dormindo, mas também um retorno, no interior do próprio sono, à situação dos inícios da vida, possibilitada por uma regressão radical, que implica o abandono das aquisições psíquicas em seu estado de vigília. (McDougall, 1999. Pg. 66)
O Inquietante
O filme aborda também a situação dolorosa de olhar para um filho vivo-morto, cuidar dele, investir libidinalmente seu corpo inerte, enfrentar o medo de que ele morra. Falar com a criança na esperança de que as palavras produzam algum sentido, restaurem o vínculo e provoquem qualquer movimento que indique sua presença viva e o contato mínimo com a realidade.
Vemos que na ausência dos cuidados dispensados à criança pelos familiares, no que tange aos exercícios fisioterapêuticos, saídas ao ar livre, alimentação via sonda ou colher, práticas de higiene, entre outros, haveria um processo de atrofia do corpo biológico, decorrente de necessidades básicas não atendidas.
Podemos dizer que as famílias vivem um luto pela ausência de seus filhos e testemunham seu sono silencioso, insistente e continuado, acolhendo seu aparente retorno ao estado primitivo, em que é preciso nomear suas necessidades, falar com ela, acalentá-la, alimentá-la. Mesmo sem obter respostas, prosseguir ‘ouvindo’ o silêncio e desvendando a experiência inscrita nesses corpos para construir com elas uma narrativa que produza sentidos para esse sono que oculta o trauma, o terror da perda.
É nessa perspectiva que o pensamento de Freud sobre a dimensão erótica e narcisista do sono implica uma reflexão sobre o desamparo e sobre o papel do Outro em sua ação de erotizar o repouso e tornar prazerosa e tolerável a experiência de regressão radical implicada no dormir. (Pereira, 2003. Pg. 138)
Chama a atenção o título “A Vida em Mim” – que leva a pensar sobre como a vida se manifesta na síndrome? Corpos e mentes inertes, desinvestimento libidinal no mundo externo, vida psíquica ‘pausada’, corpos imóveis que seguem ‘vivos’, sem sintomas de falência. Então, como lidar com essa vida silenciosa, onde não há elaboração e produção de sentidos? Que narrativa habita esses corpos?
De modo semelhante à doença, o estado do sono também significa uma retração narcísica das posições da libido para a própria pessoa, mais precisamente para o desejo de dormir. O egoísmo dos sonhos se enquadra bem nesse contexto. Em ambos os casos vemos, ainda que seja apenas isso, exemplos de mudanças na distribuição da libido graças à mudança no Eu. (Freud, 1914-1916)
As contações de histórias feitas pela irmã de uma das crianças adormecidas configura-se como tentativa de propor alguma interação com o mundo externo, assim como no filme “Fale com Ela” de Almodóvar quando o enfermeiro da paciente em coma pede para seu namorado falar com ela, ao que ele responde, “de que adianta, ela está desacordada”, o enfermeiro insiste, “sim, mas você precisa falar com ela”, ou seja, nomeá-la, narrá-la, informá-la para que ela continue existindo, a partir do olhar amoroso do outro.
O ciclo sono-vigília é, talvez, o ritmo mais fundamental de nossa existência e sofre, desde os inícios, a influência de um outro primordial e materno. Analogamente à experiência de satisfação oral representada pela mamada, seria impossível distinguir completamente a necessidade do desejo de dormir, e o sono é tanto uma necessidade vital como uma experiência psíquica e erotizada. É das vicissitudes dessa libidinização precoce que decorrem as relações do sujeito com o seu sono, implicando que nos voltemos para o problema de como, por que vias ela se dá, como parte dos processos primitivos da própria constituição do sujeito psíquico. (Ganhit, 2002. P.68)
Desesperança, falta de garantias, impotência frente às adversidades, fragilidades, vulnerabilidades.
O sono que caracteriza um corte frente a realidade que ameaça simbolicamente o tão esperado ‘retorno da mãe’, o desinvestimento libidinal em objetos externos e o superinvestimento narcísico no próprio corpo. Aqui não existe a palavra e, portanto, simbolização possível, existe apenas um corpo, que por meio do sono e da inanição, se defende do real inominável.
O sono parece agir como mecanismo de defesa, capaz de proteger a criança do objeto intrusivo, nesse caso a violência que produz a insegurança, o medo e a desumanização.
Há, portanto, a condição de desamparo, fundante e estruturante do psiquismo e a situação de desamparo, como concretização dessa condição instalada na situação traumática, relativa ao excesso pulsional que não pôde ser simbolizado, ou seja, ao inundamento pulsional no psiquismo, à instalação da angústia automática. Nesse sentido, o pânico é expressão da instalação de uma situação de perigo interna insuportável para o sujeito: a situação de desamparo, a situação de ausência de ajuda. O perigo é o de perder o amor do objeto, o perigo é o desabamento de todo o mundo simbolicamente organizado. Em outras palavras: o retorno para o desamparo (Hilflosigkeit) original. (Menezes, 2005. Pg. 196-197)
Podemos ver o sono como descarga da pulsão? Como retraimento narcísico? Uma tentativa de preservação do eu, como unidade narcísica? Alcançar o estado de nirvana em que as tensões desaparecem e remetem ao nada, ao desligamento da vida? Poderíamos pensar nesse sono como ‘desejo’ de morrer para depois da tempestade, retornar ao mundo de vigília?
O adormecimento manifesto como patologia narcísica, recupera o narcisismo primário e o ‘retorno à situação embrionária de proteção, onde o sujeito ainda não existe e sua constituição psíquica está ameaçada pelo trauma.
Um suposto estado narcísico primitivo – ao qual buscamos retornar insistentemente, talvez por efeito de uma força constante, quando adormecemos – é também um estado de afastamento da realidade, de anulação do princípio da realidade e de mergulho no universo do prazer. (GURFINKEL, 1995. Pg. 130)
Considerações finais
Não falamos nesse texto, sobre as singularidades de cada caso, pois o que temos é o fenômeno em si. Procuramos enunciar o que essas crianças têm em comum e sobre isso, levantar mais perguntas do que respostas sobre uma situação intrigante e desafiadora para a psicanálise.
Esperamos que ao retornarem do sono profundo, essas crianças possam encontrar uma escuta que testemunhe essa experiência singular, de modo a produzir novos sentidos para a vida, sem, contudo, desconsiderar o aspecto coletivo dessa história, que de algum modo as conecta com outras crianças em situação de refúgio na Suécia.
O trabalho com os efeitos traumáticos da violência consiste na construção de memória, porque o trauma é precisamente aquilo que não se faz passado. O trauma como exceção é dissociação entre o passado e o presente: uma pedra no caminho, que insiste em machucar, gritar, em causar o horror. A tarefa de sujeição do trauma ao aparelho de memória e de linguagem cabe a cada um e aos espaços coletivos, pois depende de que os testemunhos tenham alguma incidência no discurso compartilhado. (Vannuchi)
As crianças vítimas da síndrome, parecem se alienar de conteúdos afetivos não elaborados e sem representação, se escondem no abismo e apenas começam a despertar quando a esperança volta a existir na família, na medida em que isso seja transmitido a elas pelos seus pais, por meio da palavra.
No entanto, o filme mostra que ao ‘retornar’ à realidade, a criança não se lembra do que passou, do que aconteceu antes de cair no sono, quase como se estivesse retornando de um estado hipnótico.
O subtítulo do filme – Síndrome da Resignação me provocou, talvez porque o conceito de resignação3 indicasse uma espécie de conformismo e aceitação, que a meu ver, não condiziam com o modo como essas crianças reagem frente a violência perpetrada contra elas e suas famílias. Não acredito que o sono que desenvolvem seja algo da ordem da aceitação, mas ao contrário, penso que se assemelha mais a resistência e autopreservação frente ao horror.
A forclusão (expulsão do afeto para fora do psiquismo) consiste não somente na rejeição da representação, mas também do afeto intolerável ligado a ela. Há uma relação mais particular com o afeto estrangulado, que não conseguiu se expressar por meio de sintomas neuróticos ou psicóticos, e apresenta-se congelado em sua capacidade de representar. (McDougall, 1991. Pg. 124)
Do ponto de vista estético, vale mencionar que a neve aparece em diferentes momentos do relato, quando a câmera transita por florestas e ruas completamente cobertas de gelo e cristais, tornando a paisagem no mínimo impactante, por sua frieza extrema, numa atmosfera cinzenta e triste. Não pude deixar de associar a paisagem aos relatos que expressam o descaso com o qual os órgãos responsáveis por deferir os pedidos de asilo tratam a questão.
Nos últimos anos houve mais de duzentos novos casos de síndrome da resignação na Suécia e a Austrália também identificou alguns casos. Sabemos que os solicitantes de asilo nesses países, são abrigados em uma espécie de campos de concentração para refugiados e muitas vezes as famílias são desmembradas, encaminhadas para alas diferentes, subdivididas entre mulheres e homens, o que caracteriza uma situação bastante desumana.
Nesse contexto, o trabalho da psicanálise seria fazer surgir a palavra, a memória, as determinações sociais, colaborar na recuperação do desejo e da verdade das famílias. Oferecer uma escuta atenta, que as liberte do trauma, que permita elaborar o vivido e se reconectar com o mundo.
Trabalhar com a dor irrepresentável para que possa ser narrada, mediante uma escuta atenta e empática, parece fundamental para que essas crianças possam simbolizar, produzir sentidos e seguir seu caminho em segurança e menos desamparadas.
1 A Vida em Mim. Suécia/EUA. 2019.40min. Direção: John Haptas e Kristine Samuelson. (Netflix)
2 Os yazidis são uma minoria religiosa do Médio Oriente. Etnicamente, são curdos — ou seja, pertencem à mesma etnia do povo que habita o chamado Curdistão. No entanto, os yazidis mantiveram a sua religião específica durante séculos, o que os tornou um dos principais alvos de perseguição naquela região. https://observador.pt/2017/01/25/tres-respostas-rapidas-para-perceber-quem-sao-os-yazidis/
3 O sentimento de conformismo é uma das principais características da pessoa resignada, que não luta por alternativas para alterar a situação presente, resumindo-se apenas em concordar com ela. (wikipedia).
Referências Bibliográficas
CARDOSO, Marta Rezende. A impossível “perda” do outro nos estados limites: explorando as noções de limite e alteridade. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 2, p. 325-338, dez. 2007.
FREUD, Sigmund. Suplemento Metapsicológico à teoria dos sonhos. (1917). Obras Completas. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. (Trad. Paulo César de Souza). (1914-1916) – Obras completas de Sigmund Freud. Volume XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e Outros Trabalhos. (1930 [1929]). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
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