“Ao patologizar a tristeza, perde-se um importante saber sobre a dor de viver”
Maria Rita Kehl – O Tempo e o Cão.
Às vezes, temos a impressão de estarmos na contramão da história. Há mais de 100 anos, em 1917, Freud publicava um importante texto: “Luto e Melancolia”. Neste artigo, o pai da psicanálise buscava diferenciar estes dois sintomas, deixando claro que o luto, em si, não é uma doença.
“É digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto como o estado patológico nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal na vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo” (Freud, 1917).
Sabemos que o luto causa sofrimento e caso os sintomas decorrentes deste processo dificultem as atividades diárias, o paciente pode se beneficiar da psicanálise. Mas este estado não é uma patologia. É um trabalho psíquico, necessário para que consigamos fazer a retirada progressiva de nossa libido (energia psíquica ) do objeto perdido para poder, com o tempo, reinvestir em novos objetos; novas relações. É um processo singular, não linear e que dependerá, de cada um, de tempos diferentes para a superação da perda.
No entanto, o desejo incessante de eliminar o sofrimento em nossas vidas, nos leva a buscar todo o tipo de pseudo-saídas para a dor; leva-nos a acreditar em promessas milagrosas. O que tem sido essa explosão de livros de auto-ajuda das últimas décadas? A medicalização desmedida (inclusive do luto normal) é outro fator que dificulta a possibilidade de problematização dos sintomas pela pessoa. Sabemos ainda que a sociedade do culto à imagem também pode tamponar um sofrimento, um medo de se sentir “fora deste mundo do espetáculo”. E exclusão, nos nossos dias, tem sido, para muitos, sinônimo de desamparo. Se o medo de sofrer nos deixa encapsulados, perdemos a capacidade de nos implicarmos, de nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas. Implicar-se, exige contato com a dor de saber que somos imperfeitos, incompletos.
A própria biografia de Freud, nos revela que existem possibilidades de lidar com as perdas sem precisar adoecer com isto. Vamos relembrar um pouco desta história: em 1920, morre sua filha mais nova (e muito querida, Sophie). Em 1923, quando se deparava com o início dos sintomas de um câncer devastador (e que lhe traria enorme dor e sofrimento nos próximos anos), morre o neto mais amado (de 4 anos), filho de Sophie. No mesmo ano, sua “melhor sobrinha” (Caecilie), que era solteira e estava grávida, suicida-se tomando veneno. Tudo em um pós-guerra bastante doloroso (tivera dois de seus filhos no front – Martin e Ernest – por tempos sem notícias). No nazismo, perdeu quatro de suas cinco irmãs nos campos de concentração. Enfim, também este pensador sobre a vida e a morte teve sua teoria pautada na própria dor da perda e do luto. E durante todo esse período, manteve-se extremamente produtivo. Talvez o destino para a dor de seus lutos e perdas fosse a criação. Talvez esta seja uma possibilidade de saída para o luto: transformar a dor em força, em criatividade, em luta.
Há cem anos, Freud nos alertava de que muitos dos “sintomas” nada mais são do que mecanismos normais do psiquismo. E hoje, temos uma “patologização” dos nossos comportamentos cotidianos! Um reducionismo organicista, onde tudo é explicado por uma química cerebral. Ninguém duvida que os avanços da medicina neurológica amenizam muitas dores que a própria contemporaneidade impõe à humanidade. Mas aceitarmos que a perda faz parte da vida e é fundamental para que possamos conviver com muitas de nossas faltas, e dar um destino construtivo a outras. A psicanálise pode ajudar para que cada um, a partir de sua história, de seus recursos psíquicos, possa conquistar saídas criativas para as dificuldades e se fortalecer para as ações cotidianas.
Referências Bibliográficas
- Freud., S. : Luto e melancolia – Imago – 1917
- Gay, P. Freud: Uma vida para o nosso tempo – Companhia das letras – 1989