Autora do texto: Lucy Mary R. N. Franco (colaboradora do Núcleo Elã Psicanálise)
A lenda
Procusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, ele tinha uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Uma vítima nunca se ajustava exatamente ao tamanho da cama porque Procusto, secretamente, tinha duas camas de tamanhos diferentes. Continuou seu reinado de terror até que foi capturado pelo herói ateniense Teseu que, em sua última aventura, prendeu Procusto lateralmente em sua própria cama e cortou-lhe a cabeça e os pés, aplicando-lhe o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes.
Procusto e o laço social
…É que Narciso acha feio o que não é espelho.
(Caetano Veloso)
Esse texto propõe uma reflexão em relação ao personagem da lenda grega – Procusto, tomando-o como uma espécie de metáfora dos tempos atuais. Trata-se de um sujeito cuja realidade é especular, que está preocupado apenas em engrandecer sua própria imagem e impô-la à sociedade por meio da violência.
Vivemos em tempos de enorme mal-estar e desamparo social. Tempos em que a cultura do narcisismo nessa sociedade da imagem, vem sendo instaurada fortemente em detrimento dos sujeitos singulares e seus direitos.
Uma sociedade na qual as relações de poder submetem e subjugam principalmente aqueles considerados os mais fracos e passíveis de serem dominados.
Abordaremos, portanto, alguns aspectos do narcisismo, da perversão e a formação do laço social, tendo como referência o livro O mal-estar na Atualidade de Joel Birman.
Procusto será aqui entendido, como aquele personagem que de forma narcísica e perversa faz valer suas convicções sobre um modelo ideal de ser humano, moldado à sua própria imagem e semelhança, um sujeito cuja onipotência faz crer que poderá impor um modelo de sociedade onde não há lugar para a diversidade.
Procusto representa a imposição de um ‘governo’ autoritário, sem lugar para o diálogo, que submete e engana os desavisados e define, segundo sua própria lei, como os sujeitos devem comportar-se e apresentar-se socialmente e, se assim não for, a penalidade será severa e a adaptação forçada.
“É insuportável para a individualidade perversa, o fato de perder uma posição privilegiada no mundo, superior à de qualquer outro mortal, já que estaria munido das insígnias da falicidade resplandescente.” ( Birman, 2000:261)
Poderíamos portanto, associar a atitude de Procusto aos movimentos nazistas que definiu que todos aqueles que não correspondem ao biotipo de homens arianos, estabelecido por uma classe de governantes, como o modelo ideal de uma sociedade desenvolvida e que portanto, se diferem disso, deveriam ser de fato eliminados, sob pena de macular o ideal de perfeição e pureza inventado para aquele contexto histórico.
Então, até hoje, nas sociedades atuais seriam eliminados, não apenas aqueles que ‘não coubessem na cama de Procusto’, mas também os negros, os gays, as mulheres, os pobres, os deficientes e assim por diante.
Como vimos, segundo a lógica do nosso personagem, não há lugar para a diferença, não há possibilidade de existência comum que abarque o estrangeiro, a diferença o ameaça, o diminui, simplesmente porque ele próprio não reconhece em si a própria estrangeiridade, ou ainda, não se reconhece, como alguém cindido, castrado, que terá que lidar com a falta ao longo de sua existência.
A alteridade apresentada pelo outro, ameaça sua existência e conduz ao seu apagamento, uma vez que para Procusto não há possibilidade de outro tipo de existência diferente da sua, para ele não está instituída nenhum tipo de autoridade simbólica.
Assim, o personagem não dá lugar à dúvida, ele é feito de certezas particulares, está convencido de que sabe como cada um deve ser, ou seja, segundo sua imagem e semelhança. Definiu assim, um modelo particular e quer que todos se encaixem nele.
Sua subjetividade recusa e nega seu próprio desamparo e finitude e o corpo do outro o ameaça, por que impõe o novo, quase como quebrar o espelho, desmentir a única imagem que Procusto pode ver e aceitar, colocar em questão sua existência autônoma.
Sendo assim, de acordo com Birman (2000): ‘é por isso que o sujeito perverso, para enaltecer seu próprio eu e negar sua fragilidade, precisa de maneira canibal realizar a predação do corpo do outro, afirmando assim, sua ilusória auto suficiência absoluta’.
Procusto é alguém extremamente arrogante, para quem a presença da lei simbólica passa ao largo e que, portanto, não estabelece laço social, o que só seria possível pela linguagem, ou melhor, pela palavra dita e sobretudo pelo reconhecimento da palavra do outro.
Mas ao contrário disso, para ele é impossível simbolizar a relação com o outro, simplesmente porque a humanidade está fora de cogitação, ele não vê um outro diante de si, mas sim uma coisa, um pedaço de carne que é perversamente tornado objeto do seu gozo/fetiche, de acordo com sua própria lei, que só serve a ele mesmo.
Para Procusto não existe a lei, muito menos a cultura, ele está no mundo falicamente, não foi atravessado pela castração, o que faz com que a diferença seja ameaçadora para sua condição.
“Pelo traçado das interdições edípicas, o sujeito está proibido de matar o próximo, ferir e atacar o corpo do outro, além de impossibilitado de arrancar os bens e objetos do usufruto prazeroso daquele.” (Birman, 2000:274)
Procusto não sabe onde está o seu desejo, pois só é possível desejar em relação ao outro, que ele sequer reconhece. Para que possamos existir como sujeito, dependemos do olhar desse outro. Ele não se coloca no mundo como sujeito barrado, mas quer ocupar o lugar de castrador. Quer depredar o corpo do outro, violentamente, como um objeto, um pedaço de carne à sua disposição, como um fetiche a serviço do seu gozo perverso.
“…a intersubjetividade e a experiência da alteridade apenas se constituem quando o sujeito é permeado pela diferença e pelo desejo. Com isso, a possibilidade de reconhecimento da singularidade do outro e a ruptura com o universo monótono do mesmo, estão na estrita dependência da instauração do sujeito nos registros da diferença e do desejo.” (Birman, 2000:260)
Procusto é um sujeito silenciado que não chegou nem perto da simbolização dos afetos pela palavra, assim ele também quer silenciar o outro, não sabe exercer a empatia diante do ‘estrangeiro’, não reconhece as diferenças, pois assim, segundo Lacan, teria que abandonar uma parcela do seu gozo. Muito possivelmente, ele vive num mundo desencantado, cujo vazio existencial é resolvido por ele ao colocar o corpo do outro a serviço de seu fetiche e gozo perverso. Conforme Birman:
“A solidariedade seria assim, o correlato de relações inter-humanas fundamentadas na alteridade. Para isso, no entanto, seria necessário que o sujeito reconhecesse o outro na diferença e singularidades, atributos pois, da alteridade.” (2000:25)
Nosso personagem é alguém que não chega a se constituir como sujeito, justamente por não estar atravessado pela lei simbólica, ele pratica a barbárie quando seduz suas vítimas, sob o auspício da hospitalidade, convidando-as a deitar-se na sua cama ‘sob medida’, para ‘submetê-los docilmente aos seus desígnios’ e depois ‘descartar aquilo que foi canibalizado e consumido e buscar outros corpos para recomeçar o ciclo infinito de apropriação devastadora das outras individualidades’ (Birman, 2000:263)
Muito possivelmente em dias atuais, Procusto fotografaria suas vítimas, amarradas ao seu divã, para exibi-las em redes sociais, como já vimos acontecer em situações trágicas de violência e morte, tratadas como objetos e mero espetáculo, ganhando o estatuto sensacionalista por meio da imagem.
Estabelecer o laço social só é possível pela linguagem, ele se dá na experiência do sujeito com o mundo, pela palavra falada, pelo simbólico e o reconhecimento do outro diverso. O estabelecimento do laço social e com isso a criação do sentimento de pertencimento à uma coletividade, implica no reconhecimento da diversidade e na aceitação de nossa própria finitude.
“Com isso, falar de desejo implica fazer alusão a um modo de gozo que impele o sujeito a encontrar-se com o outro. Assim, se os encontros se definem pelos laços sociais estabelecidos, sustentar o laço social implica aceitar uma perda de gozo.” (Da realidade psíquica ao laço social: a função de mediação do conceito de fantasia, 2013)
O que vemos na lenda de Procusto é que quando ocorre a ruptura com o outro, pela prática da violência, marcada pela ausência de lei, onde não há a introjeção da lei simbólica, que possibilita a existência da civilização, emerge então, a barbárie.
Procusto sofre de enorme desamparo, embora não o reconheça, não consegue lidar com os impasses das relações que implicam as diferenças, por isso lança mão da violência e destruição do outro que ameaça destruir seu mundo, seu sintoma, sua forma de existir no mundo, que considera definitiva e onde não caberia outra possibilidade, onde não caberia a dúvida.
Eliminar o outro significa assim, continuar ocupando o lugar de conforto, onipotência e poder. Em Mal-estar na Civilização Freud aponta as relações humanas como uma das fontes de sofrimento responsáveis pelo nosso mal-estar nas sociedades.
“Portanto, enquanto o conceito de lei nos remete às ideias de reciprocidade, reconhecimento e alteridade, inserindo o sujeito como diferença na experiência da intersubjetividade, a concepção de onipotência nos remete às ideias de predação, depredação e impossibilidade do reconhecimento do outro” (Birman, 2000:278)
Procusto, assim como nós, também está sujeito aos sofrimentos impostos pelos fenômenos da natureza e as relações ambivalentes com os outros humanos, como nos disse Freud em O Mal Estar na Civilização e, portanto, jamais será feliz e muito menos pleno, continuará incessantemente eliminando suas vítimas ao longo de sua existência para sustentar sua posição no mundo, para ele não há outra forma de existir.
Viverá eternamente a ilusão de que se eliminar violentamente e compulsoriamente toda diferença que o outro representa, e que nesse caso, está relacionada diretamente ao aspecto físico de seus visitantes, conseguirá dominar o medo de ser ele próprio exterminado e chegará cada vez mais perto de uma suposta autonomia.
Procusto se recusa a aceitar o assassinato do pai original da horda que deu origem a civilização, é como se ele abandonasse seus irmãos, negando a instauração da lei proveniente da morte do pai, recusando juntar-se aos outros, recusa-se a fazer parte dessa ‘frátria órfã’ conforme conceito desenvolvido por Maria Rita Kehl (2008).
Ele inventou sua própria lei e a impôs aos sujeitos que encontrou pelo caminho. Sua lei diz que todos devem ser iguais, negando qualquer ideia de singularidade, para a qual a solução só poderá ser a morte. Sua personalidade se caracteriza pelo auto-centramento, extremo narcisismo e a suposta autossuficiência, que o torna um perverso que de fato não suporta a diferença nem reconhece a subjetividade do outro.
“Portanto, o sujeito perverso, funciona como agenciador da pobreza erótica e simbólica na sociedade de massas, transformando a energia que ainda resta aos pobres do espírito em potencial de violência”. (Birman, 2000: 48)
Neste ponto, voltamos ao mal-estar na atualidade, tal como apontado por Birman (2009: 25): “O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si mesma”.
Procusto no seu narcisismo primário age como criança que toma a si mesma como objeto de amor e acredita na onipotência dos seus pensamentos, sem clivagem entre ela e o mundo externo.
E a psicanálise com isso?
“Há muito tempo já se sabe que o grande ponto de ultrapassagem para a experiência psicanalítica é a quebra da exaltação narcísica do eu, isto é, das mirabolâncias de seu espetáculo. Para que a psicanálise funcione, pois, é preciso romper com as amarras narcísicas do indivíduo, em que o gozo e a predação do outro são soberanas, para conduzir o sujeito ao encontro do insondável de seu desejo.” (Birman, 2000: 170)
Uma das discussões recorrentes em relação à psicanálise tem sido sobre como o analista pode proceder no sentido de propiciar que o paciente possa se colocar de acordo com suas necessidades, dando lugar e voz às suas questões sem que a prática psicanalítica se revele ela própria um divã de Procusto, onde não se permite a diferença, a discordância ou a dúvida.
Ou seja, que o analista não pode ser escravo da teoria, muito menos de suas convicções, para que não obstrua o processo reflexivo do paciente e que haja lugar para nomear as dúvidas e incertezas.
Sendo assim, é de fundamental importância termos referências sobre como o exercício da psicanálise, que pressupõe essencialmente a escuta qualificada do analista, pode se dar de maneira respeitosa, ética e responsável, reconhecendo o sujeito em sua singularidade.
No artigo Ferenczi: em busca da presença afetiva na clínica de Carlos Eduardo Melo Oliveira, ele diz que “Um dos mais importantes textos técnicos de Ferenczi, a Elasticidade da técnica psicanalítica (1928), marcou a transição da técnica ativa em direção ao princípio do relaxamento. Ele deslocava a ênfase das intervenções ativas para a capacidade de acolhimento, ressaltando o valor da paciência e do reconhecimento das necessidades do paciente. Ferenczi passou a buscar uma presença suficientemente flexível para atender à singularidade na clínica.
Com a chamada elasticidade da técnica propunha a adaptação da psicanálise à singularidade de cada paciente, lembrando que “se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico” (FERENCZI, 1928, p.26).
E segue: Permanecia atento aos limites e perigos de sua investigação clínica, particularmente em relação ao risco do abuso de poder. Percebeu que precisava apurar até onde a elasticidade devia ir, sabendo que existia “um grau de tensão ótimo, mais ou menos característico de cada paciente” que, mantido na situação analítica, propiciava “o melhor progresso do tratamento.” (BALINT, [1967] 1992, p.XXII).
Parece importante pensar que Ferenczi traz a reflexão para a questão do poder exercido na clínica, onde em princípio o analista seria essa figura, aquele que dá as regras do jogo e que poderá então, submeter o paciente às suas percepções, interpretações e até lhe impor as intervenções de maneira absoluta.
Importante pensar que longe disso, o analista deve se colocar no lugar do não saber frente ao seu analisante, para que gradativamente possa se aproximar da verdade do paciente. Se o terapeuta se sente tão apropriado da teoria a ponto de coloca-la acima da narrativa do paciente, sem dúvida o processo se conduzirá de maneira autoritária e narcisista por parte do analista.
Sabemos também, que a psicanálise caminha na contramão da intolerância, do ódio e da violência, porque investe na palavra e produz uma escuta empática do sujeito em toda sua complexidade e diferença, com respeito às alteridades que emergem nas relações.
Sendo assim, é papel do analista conduzir o processo de forma a desconstruir os processos narcísicos que levam à negação das diferenças, uma vez que ela pode atuar como impedimento à formação do laço social, do pertencimento e da relação com o outro. Pretendemos, portanto, que cada sujeito possa em seu trabalho analítico, lidar com o seu desamparo e com sua castração que é também universal.
“Em “Totem e tabu” (1913[1912]) Freud ‘apresenta o mito da origem da sociedade; ou seja, a possibilidade do laço social, advindo de uma submissão à autoridade simbólica (em termos lacanianos, ao Grande Outro), e que funciona também como garantia da perpetuação da espécie. Isto confere sentido à ideia do sujeito integrado na Lei paterna pela castração simbólica”. (Herzog, 2002:49)
O psicanalista ao silenciar pode entrar em contato com o seu não saber sobre o paciente, abdicar de uma intervenção em nome da palavra do paciente… Abdicar de tentar encaixá-lo em interpretações prévias, ou traduzir sua narrativa a partir de teorias. A interpretação está na cabeça do analista e sabemos que um diagnóstico também pode aprisionar o sujeito numa cama de Procusto.
Não reconhecer e legitimar as diferenças gera morte, solidão e sofrimento. Na medida em que se recusa a diferença, torna-se sozinho, pois não se estabelece o diálogo e a escuta do outro.
“ A individualidade somente pode ser constituída como singularidade na medida em que o sujeito da diferença se constitua. Enfim, a possibilidade de existência num universo permeado pelas diferenças significativas entre sujeitos singulares apenas seria possível por intermédio da instauração inflexível da diferença sexual.” (Birman, 2000: 260)
O narcisismo pode, portanto, se caracterizar como a total ausência de relação com o meio, falta de pertencimento, negação do estrangeiro que habita em cada um de nós, do desconhecido em nós, do não familiar, daquele que vem de outro lugar, diferente do meu.
Trata-se também do apaixonamento por si mesmo, da recusa à castração, do não saber lidar com a falta, com o vazio, o furo, o buraco.
“O complexo de castração está em estreita relação com o Complexo de Édipo e intimamente relacionado à interdição e ao estabelecimento da lei simbólica”. (Pontalis, Laplanche: 73)
Se Procusto fosse capaz de amar alguém além dele mesmo, esse ato amoroso impediria que seu desejo de destruição se fechasse em um narcisismo mortífero, que ao negar a diferença impede sua própria existência, uma vez que elimina qualquer possibilidade de construção de laço social.
Neste contexto, a possibilidade da travessia da fantasia, revela algo da lógica do que condiciona este mal-estar, a saber, a impossibilidade de o sujeito sair de si para se posicionar com relação aos sentidos propostos pelo outro, ou de se relacionar com os demais de modo que a natureza de seus laços não se reduza ao enredo idiossincrático que precisa ser ultrapassado para que a noção mais geral de intersubjetividade possa ser uma realidade crescente frente ao constante mal-estar na atualidade. Couto (2013).
No íntimo, todos temos um pouco de Procusto, nosso próprio narcisismo não nos deixa mentir, a questão é sobre como podemos reconhecer nosso desamparo e dirigir o olhar para o outro na sua singularidade desejante, e em falta, como somos todos os humanos. Seguir em direção ao sujeito e escutá-lo, ajuda-lo a ressignificar sua narrativa, significa a recusa ao isolamento e a instauração do encontro mais profundo consigo e com o outro.
Considerações Finais
“O Homem é o lobo do homem”
Então, sabemos que Procusto não era atravessado pela lei simbólica, o que traz à tona a reflexão sobre sua ausência de superego, como: “uma instância psíquica que condensaria o conjunto de interditos a que o sujeito deve obedecer para regular suas demandas pulsionais de satisfação e gozo nas suas relações com os outros.” (Birman, 2000:275)
Nosso personagem teve um final bastante violento… Foi morto por Teseu, que o posicionou lateralmente em sua cama, cortando-lhe as pernas e a cabeça. Esse desfecho nos faz pensar que temos aqui o famoso ‘olho por olho, dente por dente’, isto é, quando a resposta à barbárie praticada por Procusto é respondida na mesma moeda, a violência se institucionaliza, confirmando assim, a ausência da lei e, portanto, o fim da civilização.
Talvez possamos dizer que Procusto é um personagem que atualiza seu próprio mal-estar quando percebe que não conseguirá viver numa sociedade em que os humanos sejam diferentes do que ele próprio idealizou a partir de si mesmo.
A solução encontrada por ele, diz respeito à eliminação dessa diferença cujo principal resultado é promover uma alienação de si mesmo, ou seja, Procusto jamais poderá entrar em contato com aquilo que lhe falta, ele sequer reconhece seu desamparo e por isso mesmo goza quando o impõe ao outro, submetendo os corpos à mutilação, ao sofrimento e à morte.
Podemos imaginar que Procusto enfrentou um sofrimento atroz provocado pela diferença do outro, que o aterrorizava, a ponto de fazê-lo criar uma ‘tecnologia’ para a eliminação desse mal-estar causado por seus visitantes.
Podemos arriscar dizer que Procusto lançou mão de ferramentas provenientes de certo ‘progresso social’ para aniquilar as relações que poderiam eventualmente se estabelecer e que ele precisava destruir em tempo, antes de ser destruído por elas.
E só assim, com base na eliminação de seus visitantes, que a existência de Procusto pôde ser assegurada, às custas da violência que praticou para que pudesse continuar sendo ilusoriamente ele mesmo, perfeito, vivendo a ilusão de completude e habitando seu mundo solitário e ideal, onde não se estabelece nenhum laço social, onde o outro é apenas um obstáculo que precisa ser eliminado o quanto antes.
No ensaio “O mal-estar na civilização” (1929/1930) Freud fala da relação entre os sujeitos como a maior causa de sofrimento psíquico, o que remete, sem dúvida, para a dificuldade no convívio social e para a descrença de que o progresso venha a suplantar este obstáculo. Mas se não é possível suplantá-lo, talvez nos caiba inventar outros modos de laço social ou outras formas de pensá-lo, sem ser pela via da identificação. (Herzog, 2004)
Referências
BIRMAN, Joel. Mal-Estar na Atualidade – A psicanálise e as Novas Formas de Subjetivação. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2000. 2ª edição.
DETHIVILLE, Laura, MANNONI, Octave, MCDOUGALL, Joyce, VASSE, Denis. O Divã de Procusto. Porto Alegre. Ed Artes Médicas, 1991.
FERECZI, Sandor. Elasticidade da técnica psicanalítica (1928 c). p. 25-36.
FREUD, Sigmund. (1912[1913]). Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XIII.
_____(1914). Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XIV.
_____(1920). Além do Princípio de Prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XVIII.
____ (1929[1930]). O mal-estar na cultura. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XXI.
____ (1939). Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. XXIII.
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Artigos:
COUTO, Daniela Paula do, LARA E LANNA, Maria dos Anjos, LEANDRO, Mardem. Da realidade psíquica ao laço social: a função de mediação do conceito de fantasia. Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 35, n. 28, p. 27-48, jan./jun. 2013
HERZOG, Regina. O laço social na contemporaneidade. Rev. Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, VII, 3, set. 2004: 40-55
OLIVEIRA, Carlos Eduardo Melo. Ferenczi: em busca da presença afetiva na clínica. Cad. Psicanálise, CPRJ, Rio de Janeiro, ano 30, n.21, p.133-155, 2008. Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Artigo aprovado para publicação em 05 de agosto de 2008.
POLI, Maria Cristina. Perversão da cultura, neurose do laço social. Ágora, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, jan. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982004000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31 jul. 2011